
Com a realização na COP 30 no Brasil, no coração da Amazônia, a Cátedra Josué de Castro da USP produziu, nos últimos meses, uma série de estudos, textos e conteúdos relacionados ao principal evento que envolve a agenda climática global. Nos somamos aos esforços da ciência para traduzir em mensagens-chave e recomendações para a governança do clima o que as evidências científicas produzidas transmitem em relação à urgência da transição do sistema agroalimentar. Por meio de nosso eixo de incidência, também destacamos como este tema tem sido tratado nos principais espaços multilaterais.
A carta a seguir foi enviada à presidência brasileira na COP e a diversas autoridades.
[English below]
Carta de posicionamento
Mensagens da ciência para a transição agroalimentar na COP30
A realização da 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30/UNFCCC) no Brasil é uma oportunidade única para que o país exerça sua reconhecida capacidade de influência no debate público internacional. E uma das melhores formas de fazer isso é mobilizar o que há de mais avançado em evidências científicas para apoiar a busca por novos objetivos éticos e normativos na governança internacional. Por isso, apresentamos nesta carta o que entendemos serem os principais pontos de alavancagem para a transição justa e sustentável do sistema agroalimentar nos marcos do enfrentamento às mudanças climáticas.
As mensagens apresentadas neste documento se apoiam em produções autorais elaboradas com base em ampla evidência científica, rigor teórico e metodológico e diálogo interdisciplinar, boa parte delas publicadas em meios científicos e validadas por pares.
Como os sistemas agroalimentares vêm sendo tratados nos espaços multilaterais e em compromissos locais e globais?
Diferentemente do que se verifica no debate sobre transição energética, setor que concentra, de fato, o maior volume de emissões de gases de efeito estufa (GEE) globalmente, o sistema agroalimentar vem sendo sistematicamente negligenciado nas negociações globais. Isso representa um erro fundamental, uma vez que o sistema agroalimentar — compreendido como um sistema complexo e intrincado que abrange as atividades relativas à produção, processamento, distribuição, preparo, consumo e descarte de alimentos — é responsável por um terço das emissões de GEE mundiais. Isso significa que, ainda que houvesse a completa e imediata interrupção das emissões oriundas da queima de combustíveis fósseis, sem uma transformação na lógica predominante do sistema agroalimentar global, suas emissões já seriam suficientes para inviabilizar a limitação do aquecimento global a 1,5 °C e até mesmo ameaçar a meta de 2 °C até o final do século. No Brasil, a situação é ainda mais alarmante, já que o sistema agroalimentar responde por nada menos do que 73,7% das emissões brutas totais do país quando consideradas as contribuições diretas (ex.: emissões provenientes dos animais) e as indiretas (ex.: desmatamento).
O sistema agroalimentar não apenas impacta o clima, mas também é impactado pelas mudanças climáticas. Atualmente, a intensificação dos chamados eventos extremos já repercute sobre as próprias condições de produção alimentar, aumentando custos, fragilizando a competitividade do setor e gerando riscos de desabastecimento e inflação, entre outros. Tais efeitos não são sentidos do mesmo modo por toda a população. A vulnerabilidade climática torna-se especialmente aguda para comunidades que já enfrentam desigualdades estruturais, com menor acesso a recursos, infraestrutura e redes de proteção. Neste contexto, as ações de adaptação à mudança do clima são centrais e requerem um olhar interseccional, consciente e sensível às desigualdades presentes. Especificamente quanto ao sistema agroalimentar, elas devem ser orientadas por uma ideia de transição que fortaleça a resiliência local e a capacidade de adaptação das populações em situação de maior vulnerabilidade, buscando garantir a sustentabilidade em suas diferentes dimensões e o Direito Humano à Alimentação Adequada.
Ao falar de transição agroalimentar é preciso explicitar seu sentido. Em seu modo de organização predominante, esse sistema é marcado pela monotonia em suas diferentes etapas: paisagens agrícolas homogêneas e pouco resilientes, com uso abundante e crescente de insumos químicos; sistemas intensivos de criação animal, com uso excessivo de antibióticos; e dietas cada vez menos diversas, com predominância de alimentos ultraprocessados e de origem animal – todos esses elementos geradores de impactos evitáveis. Os dados disponíveis expressam contradições e falhas profundas sobre seu atual arranjo, o que compromete os serviços ecossistêmicos, prejudica a saúde humana e animal, e gera enormes custos sociais e financeiros. Tais custos, muitas vezes invisíveis ou não contabilizados pelas métricas econômicas convencionais, são externalizados e recaem sobre a sociedade, representando globalmente cerca de US$12 trilhões em gastos anuais com tratamentos de saúde, recuperação ambiental e mitigação das mudanças climáticas. A negligência em relação ao tema, portanto, é um erro que custa caro, tanto em termos socioambientais, como econômicos.
Ainda assim, somente metade dos países signatários do Acordo de Paris haviam incorporado, até o final de 2021, metas específicas para a redução de emissões de GEE no setor agrícola e pecuário em suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). As Declarações lançadas na COP27, na COP28 e na Cúpula sobre Sistemas Alimentares das Nações Unidas indicam que é preciso ir além. Considerando especificamente a NDC brasileira, atualizada em 2024, a visão do país para 2035 anuncia o compromisso com a justiça climática, a proteção da biodiversidade e a inclusão dos cidadãos em um novo paradigma de prosperidade.
O Brasil tem a oportunidade e o dever de mudar esse cenário ao presidir, pela primeira vez, a Conferência das Partes da UNFCCC, em sua trigésima edição (COP30). Se, por um lado, o evento carrega a marca do aniversário de dez anos da adoção do Acordo de Paris, por outro o balanço não é positivo: o ano de 2024 foi o mais quente já registrado globalmente e o primeiro em que a temperatura média global ultrapassou 1,5°C acima de níveis pré-industriais, o que se relaciona ao recorde de emissões de GEE em 2023. Nenhum país está mais bem posicionado do que o Brasil para colocar a transição justa e sustentável do sistema agroalimentar no centro dessa agenda e fazer dela parte importante dos esforços para reverter esse quadro.
Recomendações para destacar a importância do sistema agroalimentar no combate às mudanças climáticas e impulsionar sua transição
- É necessário afirmar a necessidade de uma transition away/phase out do modelo convencional de organização do sistema agroalimentar global. Assim como se estabeleceu a necessidade de uma transição que diminua progressiva e decisivamente o uso de fontes fósseis de energia, é necessário uma mensagem similar para o sistema agroalimentar global, substituindo gradualmente tecnologias, práticas, infraestruturas e demais componentes considerados insustentáveis, obsoletos ou incompatíveis com a direção desejada de transformação socioambiental
- O eixo fundamental dessa transição deve ser a superação da tríplice monotonia do sistema agroalimentar, reconciliando este sistema com a saúde e o bem-estar humano, não humano e do meio-ambiente. Para tanto, os elementos que caracterizam essa monotonia devem ser substituídos por práticas mais justas e sustentáveis, o que requer mudanças nas formas de regulamentação e nos sistemas de incentivo e de financiamento da produção, distribuição e consumo de alimentos. Essas mudanças possibilitarão o desenvolvimento de modelos de negócios que reduzam a atual dependência dos produtores agropecuários em relação às grandes corporações de insumos – que dominam também tecnologias de acesso restrito que degradam serviços ecossistêmicos fundamentais não apenas para a própria agricultura, mas para as diferentes formas de vida no planeta.
- A agropecuária regenerativa é parte fundamental, mas insuficiente para uma transição justa e sustentável. A adoção de práticas de agropecuária regenerativa é crescente e fundamental, pois busca reconciliar a produção com as bases naturais que a sustentam. Mas isso não pode se restringir ao uso de certas tecnologias. Um uso forte e consistente do conceito de agropecuária regenerativa envolve também ações relacionadas à gestão da paisagem com tudo o que isso significa para a conservação dos recursos hídricos e a recuperação da biodiversidade. Devem fazer parte disso os compromissos com o desmatamento zero, seja legal ou ilegal, com o fortalecimento de capacidades institucionais e de mecanismos de fiscalização, e com a regulação ambiental. Igualmente importante é a diversificação da oferta e do acesso a alimentos saudáveis (pois a agropecuária regenerativa não pode ficar restrita às principais cadeias de commodities agropecuárias em que hoje se assenta a monotonia), promovendo a redução progressiva do consumo de ultraprocessados e valorizando a sociobiodiversidade existente no planeta.
- É imprescindível estabelecer mecanismos de discriminação positiva que garantam a países e a grupos de produtores mais vulneráveis o acesso aos fundos e às tecnologias para essa transição, de modo que ela não seja indutora de desigualdades. Tal como aconteceu na emergência do atual padrão do sistema agroalimentar, quando se introduziu o pacote tecnológico convencional hoje predominante, novamente os pequenos agricultores e países com menor capacidade de investimento podem enfrentar dificuldades para se adequar às novas exigências, enquanto grandes produtores e economias desenvolvidas se beneficiam dos recursos mobilizados para esse fim. Para evitar esse cenário, é essencial adotar formas de financiamento diferenciadas, com acesso equitativo a créditos e fundos internacionais de apoio à transição, especialmente para comunidades do Sul Global.
- A transição em cada um dos subsistemas mais importantes do sistema agroalimentar global precisa ser continuamente monitorada e avaliada. Daí a necessidade de pactuação de metas progressivas que priorizem não apenas a proliferação de técnicas que regeneram enquanto, simultaneamente, se expandem modelos que levam à depleção ambiental, como tem acontecido. É fundamental que se promova a substituição destas práticas que levam à degradação ambiental por aquelas que contribuem à sua regeneração. Trata-se de induzir essas novas práticas e, simultaneamente, desincentivar as anteriores, que marcam a lógica atual dos sistemas agroalimentares.
Ressaltamos que o contexto atual, caracterizado por múltiplas crises, não somente acende alertas, mas também cria condições que podem favorecer a busca por convergências. Isso pode ser impulsionado pelo Brasil, ao convocar vozes diversas à mesa e responder com seriedade, comprometimento e ambição às adversidades deste contexto e, assim, fazer jus ao que se espera da governança global.
Definir a transição do sistema agroalimentar como um pilar do enfrentamento às mudanças climáticas vem se mostrando não somente importante, como incontornável e urgente. Sinalizar um sentido correto e os caminhos consistentes para essa transição pode ser um marco na trajetória de longo prazo dessa agenda. Isso deveria fazer parte das declarações e compromissos firmados na COP30, e pode também ser objeto de uma iniciativa liderada pelo país e que conclame parceiros à sua adesão, a exemplo do que foi feito à época da presidência brasileira do G20, com a Aliança Global contra a Fome e à Pobreza. De maneira correlata, o Brasil tem todas as condições de liderar algo como uma Aliança Global por um Sistema Agroalimentar Saudável e Sustentável, apoiada em algumas das ideias aqui esboçadas e reforçando os vínculos entre clima, alimentação, saúde e desenvolvimento.

Position letter
Messages from science for the agri-food transition at COP30
Hosting the 30th Conference of the Parties to the United Nations Framework Convention on Climate Change (COP30/UNFCCC) in Brazil offers a unique opportunity for the country to reaffirm its internationally recognized leadership in driving the global debate on sustainability and climate action. One of the best ways to do this is to mobilize the most advanced scientific evidence to support the search for new ethical and normative goals in international governance. Therefore, we present in this letter what we understand to be the main leverage points for a just and sustainable transition of the agri-food system within the framework of addressing climate change.
The messages presented in this document are based on original works developed based on extensive scientific evidence, theoretical and methodological rigor, and interdisciplinary dialogue, most of which have been published in scientific journals and peer-reviewed.
How are agri-food systems being addressed in multilateral forums and in local and global commitments?
Unlike the debate on energy transition, a sector that accounts for the largest volume of greenhouse gas (GHG) emissions globally, the agri-food system has been systematically neglected in global negotiations. This represents a fundamental mistake, since the agri-food system — understood as a complex and intricate system that encompasses activities related to food production, processing, distribution, preparation, consumption, and disposal — is responsible for one-third of global GHG emissions. This means that even if there were a complete and immediate halt to emissions from fossil fuel combustion, without a transformation in the prevailing logic of the global agri-food system, its emissions would already be sufficient to make it impossible to limit global warming to 1.5°C and even threaten the 2°C target by the end of the century. In Brazil, the situation is even more alarming, as the agri-food system accounts for no less than 73.7% of the country’s total gross emissions when direct contributions (e.g., livestock emissions) and indirect contributions (e.g., deforestation) are considered.
The agri-food system not only impacts the climate, but is also impacted by climate change. Currently, the intensification of so-called extreme events already has repercussions on food production conditions themselves, increasing costs, weakening the sector’s competitiveness, and generating risks of shortages and inflation, among others. These effects are not felt equally by the entire population. Climate vulnerability is particularly severe for communities that already face structural inequalities, with less access to resources, infrastructure, and safety nets. In this context, actions to adapt to climate change are central and require an intersectional approach that is conscious and sensitive to existing inequalities. Specifically with regard to the agri-food system, they must be guided by an idea of transition that strengthens local resilience and the adaptive capacity of the most vulnerable populations, seeking to ensure sustainability in its different dimensions and the human right to adequate food.
When talking about agri-food system transition, it is necessary to clarify its meaning. In its predominant form, this system is marked by monotony in its different stages: homogeneous and unresilient agricultural landscapes, with abundant and increasing use of chemical inputs; intensive animal husbandry systems, with excessive use of antibiotics; and increasingly less diverse diets, with a predominance of ultra-processed and animal-based foods — all of which generate avoidable impacts. The available data reveal profound contradictions and flaws in its current arrangement, which compromises ecosystem services, harms human and animal health, and generates enormous social and financial costs.These often invisible costs, overlooked by conventional economic metrics, are passed on to society and total roughly US$12 trillion a year in health care, environmental restoration, and climate change mitigation. Neglecting this issue, therefore, is a costly mistake, both in socio-environmental and economic terms.
Even so, by the end of 2021, only half of the countries that signed the Paris Agreement had incorporated specific targets for reducing GHG emissions in the agriculture and livestock sector into their Nationally Determined Contributions (NDCs). The Declarations launched at COP27, COP28 and at the United Nations Food Systems Summit indicate that more needs to be done. Considering specifically Brazil’s NDC, updated in 2024, the country’s vision for 2035 announces a commitment to climate justice, biodiversity protection, and citizen inclusion in a new paradigm of prosperity.
Brazil has the opportunity and the duty to change this scenario by chairing, for the first time, the Conference of the Parties to the UNFCCC, in its thirtieth edition (COP30). If, on one hand, the event marks the tenth anniversary of the adoption of the Paris Agreement, on the other, the balance is not positive: 2024 was the hottest year on record globally and the first in which the global average temperature exceeded 1.5°C above pre-industrial levels, which is related to record GHG emissions in 2023. No country is better positioned than Brazil to place the just and sustainable transition of the agri-food system at the center of this agenda and make it an important part of efforts to reverse this situation.
Recommendations to highlight the importance of the agri-food system in combating climate change and driving its transition
i) It is necessary to affirm the need for a transition away/phase out of the conventional model of organization of the global agri-food system. Just as the need for a transition that progressively and decisively reduces the use of fossil fuels has been established, a similar message is needed for the global agri-food system, gradually replacing technologies, practices, infrastructure, and other components considered unsustainable, obsolete, or incompatible with the desired direction of socio-environmental transformation.
ii) The fundamental aim of this transition must be overcoming the triple monotony of the agri-food system, reconciling this system with human, non-human, and environmental health and well-being. To this end, the elements that characterize this monotony must be replaced by more just and sustainable practices, which requires changes in the forms of regulation and in the incentive and financing systems for food production, distribution, and consumption. These changes will enable the development of business models that reduce the current dependence of agricultural producers on corporate giants that supply inputs, which also dominate restricted-access technologies that degrade ecosystem services that are fundamental not only to agriculture itself, but to the different forms of life on the planet.
iii) Regenerative agriculture is a fundamental part of a just and sustainable transition, but it is insufficient on its own. The adoption of regenerative agricultural practices is growing and essential, as it seeks to reconcile production with the natural foundations that sustain it. However, this cannot be limited to the use of certain technologies. A strong and consistent use of the concept of regenerative agriculture also involves actions related to landscape management, with all that this means for the conservation of water resources and the recovery of biodiversity. This should include a commitment to zero deforestation, whether legal or illegal, and to strengthening institutional capacities and oversight mechanisms, as well as environmental regulation. Equally important is the diversification of supply and access to healthy foods (since regenerative agriculture cannot be restricted to the main agricultural commodity chains on which monotony is based today), promoting the progressive reduction of ultra-processed food consumption and valuing the planet’s existing socio-biodiversity.
iv) It is essential to establish affirmative action mechanisms that guarantee the most vulnerable countries and the producer groups access to the funds and technologies needed for this transition, so that it does not lead to inequalities. As was the case with the emergence of the current arrangement of the agri-food system, when the conventional technological package that predominates today was introduced, small farmers and countries with less investment capacity may once again face difficulties in adapting to the new requirements, while large producers and developed economies benefit from the resources mobilized for this purpose. To avoid this scenario, it is fundamental to adopt differentiated forms of financing, with equitable access to credit and international funds to support the transition, especially for communities in the Global South.
v) The transition in each of the most important subsystems of the global agri-food system needs to be continuously monitored and evaluated. Hence the need to agree on progressive goals that take into account not only the proliferation of techniques that regenerate, while simultaneously expanding models that lead to environmental depletion, as has been the case. It is essential to promote the replacement of practices that contribute to ecological regeneration. It is a matter of inducing these new practices and, at the same time, discouraging the previous ones, which mark the current logic of agri-food systems.
We emphasize that the current context, characterized by multiple crisis, not only raises red flags, but also creates conditions that may favor the search for convergence. This can be driven by Brazil, by bringing diverse voices to the table and responding with seriousness, commitment, and ambition to the adversities of this context, thus living up to what is expected of global governance.
Defining the transition of the agri-food system as a pillar in the fight against climate change has proven to be not only important, but also unavoidable and urgent. Signaling the right direction and consistent paths for this transition could be a milestone in the long-term trajectory of this agenda. This should be part of the declarations and commitments made at COP30, and could also be the subject of an initiative led by Brazil that calls on partners to join, as was done during Brazil’s presidency of the G20 with the Global Alliance Against Hunger and Poverty. Similarly, Brazil is well placed to lead something like a Global Alliance for a Healthy and Sustainable Agri-Food System, based on some othe ideas outlined here and reinforcing the links between climate, food, health, and development.