Artigo publicado originalmente no Valor Econômico ( 21/05/2025 p. A18).

Não poderia ser mais oportuna a afirmação de Izabella Teixeira, em recente entrevista a Daniela Chiaretti (Valor 7/05), de que a natureza é um ator político. Independentemente de suas consequências imediatas para as discussões que vão ocorrer na COP30, pensar a natureza como ator político traz à tona dois temas fundamentais. O primeiro é de caráter ético-normativo e tem consequências jurídicas importantes no que se refere aos “direitos da natureza”. O segundo tem interesse prático e deve ser pensado à luz da pergunta essencial colocada por Paul Hawken em seu fundamental e recém-lançado livro (Carbon: The Book of Life): as atividades econômicas atuais resultam em mais ou em menos vida?
Por que devemos preservar a coruja-pintada? Esta é a pergunta de Amartya Sen num artigo publicado na London Review of Books em 2004. Este animal não traz nenhum benefício aparente e imediato ao bem-estar humano, mas, ainda assim, não deveríamos permitir sua extinção por razões que nada têm a ver com nossos padrões de vida. Amartya Sen apoia-se em Gautama Buda para sustentar que, por sermos tão mais poderosos que as demais espécies, faz parte de nossa responsabilidade minorar essa assimetria.
Reconhecer os direitos da natureza abre caminho para este objetivo. Até agosto de 2023 o Eco Jurisprudence Monitor documentava 353 iniciativas nesta direção, das quais 229 tinham sido aceitas em 24 países. Vale a pena consultar a imensa quantidade de documentos fornecidos pelo Eco Jurisprudence Monitor. Em 2024, por exemplo, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a resolução “Harmonia com a Natureza”, enfatizando a necessidade urgente de alinhar as atividades humanas com os processos naturais.
More Than Human Rights (MOTH) é um programa da New York University, liderado por Cesar Garavito, professor e ativista que organizou, na Colômbia, seu país de origem, o vitorioso movimento de crianças junto à Corte Suprema daquele país para que as políticas públicas fossem norteadas pelo interesse em impedir que as mudanças climáticas comprometessem a qualidade de vida no futuro. Sua militância nos direitos humanos acabou por conduzi-lo à criação do MOTH, juntamente com Merlin Sheldrake (jovem biólogo cujo livro, traduzido em português como A Trama da Vida. Como os Fungos Constroem o Mundo, Ed. Fósforo, vendeu globalmente mais de um milhão de exemplares), acadêmicos de diferentes áreas, mas também músicos e lideranças indígenas.
E quem imagina que este é um tema meio “bicho-grilo” e avesso ao progresso técnico ficará surpreso ao conhecer os avanços científicos no conhecimento da natureza que este movimento está estimulando. Cesar Garavito e David Gruber publicam na revista Time Magazine artigo que relata o uso da aprendizagem de máquinas, da robótica e da bioacústica para o estudo da comunicação animal não humana com impressionante profundidade e precisão. O uso de nomes únicos pelos elefantes, a capacidade das mariposas em escutar o estresse das plantas e a decodificação dos complexos sons dos cachalotes, contendo um alfabeto fonético semelhante aos blocos fundamentais da linguagem humana, são algumas das áreas que o respeito pelos direitos mais que humanos tem incentivado os cientistas a estudar.
Outra área em que tecnologias contemporâneas abrem caminho para o conhecimento da natureza é na micorrízica arbuscular, ou seja, na formação de estruturas em forma de arbusto (arbúsculos) dentro das células das raízes das plantas hospedeiras, facilitando a troca de nutrientes. Esta é a mais importante parceria simbiótica da natureza, a dos fungos com as raízes das plantas, presente em 70% das espécies de plantas terrestres. Participantes do MOTH acabam de publicar artigo na Nature mostrando o uso da inteligência artificial para mapear globalmente esta relação simbiótica.
Galileu Galilei afirmava que a linguagem da natureza era matemática e suas letras triângulos, círculos e outras figuras geométricas. Os direitos mais que humanos rompem com esta visão, reconhecem e respeitam a inteligência, as capacidades, a criatividade da natureza e é com base nestes atributos que a natureza deve ser considerada como ator político.
Mas é óbvio que, além desta dimensão valorativa, tratar a natureza como ator político tem consequências práticas. E estas consequências são especialmente importantes para os países onde a vida é mais abundante e diversificada, ou seja, os países tropicais. É fundamental, claro, ampliar as áreas protegidas dos diferentes biomas, garantir a integridade dos rios e a vida dos oceanos.
Mas para países, como os da América Latina, em que a agropecuária ocupa parte tão importante do território e tem tanta relevância econômica, o maior desafio está em introduzir a biodiversidade no interior mesmo das superfícies produtivas. As técnicas em que, até aqui, se apoiou o crescimento da agropecuária latino-americana de grãos, por exemplo, dependem de fertilizantes sintéticos cujos impactos sobre os ciclos geoquímicos do nitrogênio e do fósforo já ultrapassaram as fronteiras planetárias. A dependência em que estas culturas se encontram de agrotóxicos comprometem a vida no solo. Como esta destruição tem efeito cumulativo, os agricultores são obrigados a usar cada vez mais insumos para obter a mesma quantidade de produtos. Os custos sobem, a produtividade é estagnada, o que representa ameaça tanto à segurança alimentar, quanto às funções macroeconômicas que as exportações agrícolas desempenham.
O Brasil é hoje líder mundial na pesquisa e, embora ainda de forma minoritária, no uso não só de bioinsumos, mas de um conjunto de tecnologias voltadas exatamente a reduzir drasticamente o uso dos vetores de morte (em benefício dos vetores de vida) na produção agropecuária. Mas é fundamental que estes vetores de morte sejam eliminados das paisagens produtivas o quanto antes.
O país que liderou a mais importante revolução agrícola do mundo tropical, com a ocupação agropecuária do Cerrado, tem hoje a missão e a responsabilidade global de liderar a transição em direção a um sistema agroalimentar saudável e sustentável. Isso é reconhecer a natureza como ator político.